Mercado secundário avança e muda perfil de debêntures
Há dez anos, quando o gestor Leonardo Ono, da Legacy Capital, comprava um título de dívida de alguma companhia, já contava com o fato de que deveria carregar o investimento até a data de vencimento. Com um mercado secundário de debêntures pequeno, era difícil conseguir trocar aquele papel. Naquela época, os títulos tinham prazos mais curtos, já que ninguém conseguia comprar uma dívida com vencimentos longos, como dez anos, e o volume de investimento era bem menor.
“A maior parte das emissões era de três anos e era difícil saber se a gente conseguiria ao longo desse período se desfazer de uma posição de R$ 100 milhões. A gente comprava uma parte menor e tinha que ter um pouco de fé pra carregar até o vencimento”, afirma Ono.
Agora, em 2023, o cenário é outro. O volume de títulos negociados no mercado secundário superou, até setembro, o de todo o ano de 2022, segundo dados mais recentes da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). Foram movimentados nos nove primeiros meses do ano R$ 314,8 bilhões, ante os R$ 275,3 bilhões registrados no ano passado inteiro. O número de negociações aumentou 60%, na mesma base de comparação.
A liquidez do secundário ainda não pode ser considerada alta, mas houve uma melhora substancial nos últimos anos. “O Brasil ainda está longe dos Estados Unidos e da Europa, mas foi se aproximando da liquidez desses mercados”, afirma Daniel Palaia, gestor de fundos de crédito da Schroders Investments.
O avanço visto nos últimos anos é resultado de alguns fatores, como o aumento dos participantes desse mercado. Com o tempo, gestoras que até então só trabalhavam com estratégias multimercado (que mescla investimentos em ações, câmbio e renda fixa) passaram a ver o crédito como uma linha de negócio que possibilitaria a expansão, diz Cristiano Cury, coordenador da comissão de renda fixa da Anbima. Muitas delas acabaram se tornando especialistas em crédito corporativo e deixando de lado outras estratégias. “Elas viram que o crédito poderia ser uma linha rentável”, afirma.
“A gente comprava uma parte menor e tinha que ter um pouco de fé pra carregar até o vencimento” (Leonardo Ono).
As gestoras ligadas aos bancos também ganharam mais espaço. Na mesa de crédito da Bradesco Asset Management (Bram), por exemplo, o volume movimentado no secundário passou de R$ 3 bilhões em 2019 para R$ 15 bilhões em 2022, segundo Ana Luisa Rodela, chefe de gestão de crédito da casa. “De 2018 para cá o secundário cresceu muito e o grande divisor de águas foi o surgimento de mais assets atuando com fundos de crédito.”
Quando poucas gestoras investiam em debêntures, explica Rodela, elas precisavam de mais crédito do que o existente no mercado. Por causa disso, todo crédito novo era comprado e mantido em carteira. Com o aparecimento de assets independentes e das de menor porte, elas passaram a entrar em uma dinâmica que envolve também a venda no secundário. “Às vezes, o gestor precisa de caixa, então ele decide vender mesmo o papel. Em outros casos, ele compra uma operação, mas com o passar do tempo consegue vender a um preço melhor do que comprou e faz isso pra realizar o lucro e comprar outros títulos.”
Nos últimos dois anos, outra mudança importante foi o aumento das gestoras especializadas em ativos estressados, ou seja, de empresas que passam por problemas de crédito, liquidez ou entram em recuperação judicial. “Por muito tempo, o mercado de crédito existiu só para nomes muito bons e sem problemas. Uma vez que determinado emissor tinha um evento de crédito, não era possível encontrar liquidez para aquele nome. Agora, com casas focadas nesse universo, há liquidez inclusive para esse tipo de papel”, diz Rodela.
Para Ono, da Legacy, a maior disseminação de informações sobre debêntures contribuiu para o desenvolvimento do secundário, assim como o aumento do número de papéis precificados pela Anbima. Ao fim de 2019, 344 títulos tinham os preços oficiais divulgados, segundo a entidade. Em outubro de 2023, eram 838.
O avanço do mercado de debêntures incentivadas, títulos usados para financiar projetos de infraestrutura e que são isentas de Imposto de Renda, também teve seu papel, ao ampliar a participação de pessoas físicas no secundário. Tais investidores historicamente movimentam volumes menores, mas ajudam no aumento do fluxo de negociações. Atualmente, cerca de 30% dos títulos negociados no secundário são incentivados.
A pandemia da covid-19 foi considerada a primeira “prova de fogo” do mercado secundário. Sem saber o que poderia acontecer, os investidores começaram a pedir os resgates de suas aplicações, forçando as gestoras a vender títulos. Diante da preocupação com os efeitos da crise nas empresas, o Congresso chegou a aprovar um “orçamento de guerra” e autorizar a entrada do Banco Central na negociação de títulos privados, como debêntures e certificados de depósitos bancários. O objetivo foi garantir a liquidez dos papéis, com a possibilidade do BC comprar títulos no mercado secundário.
Nessa época, os fundos multimercado e as tesourarias dos bancos conseguiram também absorver parte dos títulos colocados à venda. “De forma geral, o mercado mostrou que estava lá. Teve liquidez para suprir a onda de vendas dos papéis”, diz Cury.
Em 2023, o mercado foi novamente testado pela crise provocada pela descoberta de um rombo contábil na Americanas e pelas dificuldades financeiras da Light, que culminaram em pedidos de recuperação judicial de ambas as empresas. De maneira geral, a avaliação de investidores é que o secundário se saiu bem no teste. Quem precisou vender os papéis conseguiu.
Uma das mudanças que poderiam impulsionar o mercado secundário brasileiro, segundo Ono, da Legacy, seria a possibilidade de as empresas terem emissões “benchmarks” [padrão] e poderem reabrir as mesmas operações conforme a necessidade de captação de recursos.
“Lá fora funciona assim. As companhias têm emissões de três, de cinco, de dez anos e vão reabrindo, fazendo novas captações com a mesma emissão. Assim, ao invés de terem várias operações picadas, elas concentram o volume em menos ativos”, explica. Na prática, isso significaria uma quantidade menor de papéis em negociação e a concentração da negociação nesses papéis, explica o gestor.
Cury, da Anbima, acredita que o mercado secundário deve experimentar novas ondas de crescimento quando for possível operar “vendido” com debêntures. “Diferentemente de ações e de juros, em crédito eu não posso ficar comprado ou vendido, só posso ficar comprado”, diz. Segundo ele, essa possibilidade tem sido discutida pelo mercado e faz parte, inclusive, da agenda das iniciativas do governo federal para reforma do sistema financeiro e do mercado de capitais.
Outro fator que, segundo ele, poderia impulsionar o mercado de debêntures é o acesso ao bolso dos estrangeiros. Hoje, o país tem um tratamento tributário diferente para o investidor de fora que investe em títulos de dívida públicos ou privados. Eles são isentos de pagamento de Imposto de Renda quando compram títulos públicos, mas pagam quando compram, por exemplo, uma debênture. “Deveria ser feita uma equiparação do tratamento ao investidor estrangeiro para que eles comprassem também os títulos corporativos.”
Em setembro de 2022, foi aprovada uma Medida Provisória que concedeu a residentes ou domiciliados no exterior a isenção no imposto sobre aplicações em títulos privados, em fundos de investimento em direitos créditos (Fidc) e em letras financeiras. A medida, porém, ficou em vigor só no período de janeiro a março deste ano.
Na B3, uma das apostas para o crescimento do secundário é na tecnologia. A responsável pela bolsa brasileira desenvolve há pouco mais de um ano uma nova plataforma de negociação para títulos como debêntures. Desde o fim de julho, o sistema já é usado para títulos públicos. A expectativa é que até o fim do primeiro semestre de 2024, a negociação de títulos corporativos também seja feita na plataforma.
No novo sistema, serão reunidas informações e dados sobre ofertas que estão dispersas no mercado. “A negociação dos títulos é feita em mercado de balcão e há uma descentralização da informação. Intermediários e outras plataformas negociam em ambientes diferentes, o que faz com que a informação não transite de maneira igual para todos os investidores”, diz Afonso Rossatto, superintendente de produtos de renda fixa da B3.
A negociação das debêntures é feita com a ajuda da figura do “broker”, que conecta quem quer vender e quem quer comprar os títulos. A plataforma da B3 vai conectar as informações desses intermediários e processá-las para que elas sejam disseminadas no mercado. A ideia com isso, segundo Rossatto, é aumentar a transparência e o número de transações no secundário. “Só com a tecnologia vamos conseguir escalar as negociações.”
Fonte: https://valor.globo.com/financas/noticia/2023/12/05/mercado-secundario-avanca-e-muda-perfil-de-debentures.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=edicaododia